DIVERSIDADE
DE CULTURAS: UM DESAFIO
INTRODUÇÃO
A diversidade de culturas pode ser
lida como uma ameaça, ou como uma oportunidade que rasga novos horizontes sobre
a dimensão humana e sobre a sua capacidade criadora, à imagem e semelhança de
Deus. Pode ser vista como um elemento perturbador ou como um factor de
enriquecimento. Pode ser vista como um foco de tensões e conflitos ou como uma
fonte estimulante de descobertas.
Dentro dessa diversidade podem ser identificados, em todas as culturas,
factores que são efectivamente uma ameaça à realização plena do ser humano.
Essas ameaças não são específicas apenas a uma parte dessas culturas mas de
todas elas. Sendo todas e cada uma das culturas resultado da acção dos homens
em sociedade, e considerando que o homem não é ser um perfeito, é natural e
previsível que em cada uma se encontre elementos que são nocivos e
prejudiciais ao desenvolvimento saudável das pessoas e dos grupos.
O discernimento desta diferença é decisivo na abordagem da diversidade
cultural e dos desafios que ela nos coloca.
RELIGIÕES
E CULTURAS
As religiões são parte integrante das culturas. Existe um elo muito
forte entre a cultura e a religião. Falar de diversidade de culturas é
necessariamente falar também de diversidade religiosa.
Mas a cultura não é apenas resultado dos aspectos religiosos. Nela
encontram-se misturados outros elementos. Podemos no entanto dizer que a religião
é, pelo menos em algumas culturas, um factor dominante.
Nas culturas ocidentais a tendência tem
vindo a acentuar o esvaziamento da influência religiosa no quotidiano dos indivíduos.
Existem mesmo sectores que defendem, de uma forma acérrima, que a religião não
se deve imiscuir na vida pública e deve ser remetida, senão mesmo
enclausurada, na privacidade do indivíduo. A secularização consiste
precisamente no processo cultural e ideológico de desvalorização da dimensão
espiritual e do religioso na praça pública, nos domínios da vida em
sociedade, nas decisões políticas, nas tomadas de posições éticas e morais,
nos modelos de desenvolvimento, na definição dos currículos académicos.
Alguns dos fundamentalistas desta tendência chegam ao ponto de sugerir que
todos os símbolos religiosos deveriam pura e simplesmente ser banidos dos espaços
públicos e do vestuário dos cidadãos; os feriados nacionais com conotação
religiosa deveriam ser retirados ou substituídos por outros de carácter laico;
as festividades sociais, ligadas ao religioso, deveriam ser excluídas do
mercado de trabalho e até os votos de boas festas deveriam seguir um modelo não
religioso. A secularização na Europa nega à sua proposta de Constituição a
referência à herança cristã.
Nesta dinâmica o relativismo ético, de forma demagógica, assentou os
arraiais dentro de uma sociedade que apenas sabe conjugar o verbo dos direitos,
procura o prazer a qualquer preço e pensa a vida em termos do ter e não do
ser. Os valores tradicionais foram colocados e continuam a ser colocados em
causa: aborto, eutanásia, suicídio assistido, manipulação genética,
promiscuidade sexual com o rótulo de sexo seguro, pornografia, violência
gratuita na televisão, corrosão do conceito de família, homossexualidade,
etc.
Do mesmo modo o naturalismo materialista, de forma dogmática, tomou de
assalto a ciência e fez dela sua refém. Como referiu recentemente o Prof. Dr.
Jónatas Machado numa conferência na Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa, sobre o tema Evolucionismo v. Criacionismo, com o título O Paradigma Naturalista:
Homens
como Lyell, Comte, Darwin, Huxley, Haeckel, Mayr, Sagan, Lewontin, Gould,
Eldredge, Dawkins, Dennett, Pinker, Hawking, etc., têm sustentado que toda a ciência
tem necessariamente que ser naturalista, isto é, tem que excluir liminarmente
qualquer possibilidade de causas sobrenaturais. Estes e outros cientistas
decretaram que no Universo não há qualquer lugar para Deus e para a análise
dos efeitos da sua acção. Para eles, o facto de essa ser a sua profunda convicção
filosófica e ideológica é razão mais do que suficiente para que todos
aceitem doravante essa determinação e construam a ciência de acordo com ela.
A verdadeira ciência, dizem, só pode ser naturalista. A mesma só pode
investigar as relações de causa efeito entre matéria e energia, no tempo e no
espaço. 1
A globalização veio colocar frente a frente culturas cujas raízes,
tradições, cosmovisões, usos e costumes, valores e princípios éticos, são
bastante diferenciados, senão mesmo opostos.
É compreensível que culturas em que os factores dominantes sejam os
religiosos vejam com apreensão as culturas em que os processos de secularização
têm vindo a reduzir a presença e a influência do religioso. Mas a diferença
não existe apenas entre e nas culturas secularizadas e não secularizadas. Ela
existe também entre as várias maneiras de entender o sagrado e a sua relação
com o secular.
DIÁLOGO,
TOLERÂNCIA E LIBERDADE INDIVIDUAL
Quaisquer que sejam os factores que contribuem para o choque de culturas
e de civilizações, penso que mais do que o terrorismo deve ser a condição
humana que nos impõe o diálogo, a tolerância e a liberdade individual. Os
desafios que temos diante de nós passam pelo exercício pedagógico, sereno mas
firme, do diálogo, da tolerância e da liberdade individual.
Quaisquer que sejam as diferenças existentes nunca por nunca ser a violência
se pode justificar e todo o esforço deve ser colocado no sentido de que as ameaças
sejam diluídas, desde que não o sejam comprometendo os próprios valores que
asseguram a convivência entre elas.
Como evangélicos podemos dizer que tanto o
diálogo, como a tolerância e a liberdade, estão ancorados no Evangelho, na
pessoa de Jesus Cristo e na prática da Igreja ao longo dos anos, sem descorar
os momentos em que esta se desviou das suas linhas orientadoras. A Bíblia,
tanto no Velho como no Novo Testamento, aponta-nos o respeito pelas convicções
de cada um e de todos. Apesar de com a mesma firmeza e determinação
estabelecer fronteiras bem distintas nos valores espirituais e éticos
relativamente a outras mundividências, e ser radicalmente não sincretista.
É já um lugar-comum falar de diálogo, tolerância e liberdade, mas
pessoalmente considero que é necessário nesse diálogo, tolerância e
liberdade, ser ousado, honesto, franco, claro, transparente, directo, objectivo
e concreto na afirmação da verdade e na denúncia da injustiça. Só existe
verdadeiro diálogo, tolerância e liberdade, quando a verdade é enunciada, a
justiça é assumida e existe integridade de vida por parte dos seus
proponentes. Silenciar a verdade é promover a hipocrisia e deixar que os
germens da injustiça proliferem.
É esta a atitude que encontramos na pessoa de Jesus Cristo. Nunca por
nunca ser, apesar da opinião contrária dos religiosos de então, apesar dos
interesses instalados, apesar das consequências que daí poderiam advir, Jesus
Cristo nunca escondeu nem calou a Sua identidade, o Seu propósito, a Sua missão,
a Sua mensagem de amor, perdão e serviço; de denúncia dos pecados individuais
e sociais, da religião e do poder político.
PLURALISMO
RELIGIOSO
Na reflexão sobre os desafios da
diversidade cultural não podemos deixar de abordar a questão do pluralismo
religioso. Este pluralismo faz parte indissociável da liberdade religiosa que
gostaríamos de ver amplamente consignada e respeitada em todas as nações e
culturas. Em Portugal temos dado, nos últimos anos, passos decisivos no exercício
da liberdade religiosa segundo a igualdade perante a lei, embora ainda existam vários
aspectos que se encontram incompreensivelmente por regulamentar, na mudança de
mentalidades e na prática social e política; bem como de nos encontrarmos
ainda longe da igualdade de tratamento.
No entanto se o pluralismo religioso significa que todas as religiões são
parte da mesma verdade acerca de Deus, da Sua identidade, natureza, carácter,
plano e propósito, temos que afirmar de modo claro que não afinamos por esse
diapasão porque o consideramos contraditório e consideramos que em Deus não há
contradição.
Existem diferenças fundamentais e irreconciliáveis entre, por exemplo,
o panteísmo e o teísmo. A ideia de um deus que está em tudo e é tudo como
uma espécie de energia cósmica e a ideia de um Deus pessoal, há uma diferença
abissal e intransponível. As duas não podem estar certas.
Mesmo dentro da concepção de um Deus pessoal, entre um Deus distante e
longínquo que entregou o universo e a humanidade a si mesmos, e um Deus
envolvido e presente na própria história humana, existe uma diferença
flagrante.
No próprio monoteísmo a concepção de um Deus trino faz um radical
diferença.
A forma como o homem é reconciliado com Deus, ou seja o plano de salvação,
através do esforço humano ou do favor divino, é absolutamente distinto.
Pode parecer à primeira vista que estas ideias diferentes são
irrelevantes no estilo de vida, no comportamento e nas atitudes, no modo de
entender os modelos de desenvolvimento social e económico. Alguns podem até
pensar que estes aspectos são o obstáculo ao esforço comum para alcançar
esses objectivos e que importa removê-los para que seja possível alcançá-los.
Não é esse o nosso entendimento:
- Apesar das nossas diferenças podemos congregar esforços na defesa de
uma cultura de diálogo, tolerância e liberdade.
- O diálogo, a tolerância e a liberdade só fazem sentido quando com
transparência admitimos, debatemos e confrontamos as nossas diferenças,
dirimindo os nossos argumentos e pressupostos.
- Os conteúdos religiosos e espirituais são factores motivacionais
essenciais.
No espírito de diálogo, tolerância e liberdade como evangélicos damos
eco à afirmação do próprio Jesus Cristo: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão
por mim” (João 14:6); como
o único e suficiente Senhor, Salvador e Mediador entre Deus e os homens,
declarando o que a Bíblia diz e que não há interpretação que possa
retirar-lhe a sua radicalidade, sem torcer o seu sentido.
Do ponto de vista bíblico o problema do homem não reside no que é
circunstancial, mas na sua própria natureza. O homem precisa entender que só
mudando por dentro, as coisas podem mudar por fora. Essa foi a mensagem distinta
que Jesus Cristo personificou, enunciou, ensinou e exemplificou. Sem
arrependimento e sem conversão não é possível uma mudança efectiva para o
tempo e para a eternidade, na relação do homem com Deus, com o seu próximo e
consigo mesmo. Jesus chama-nos a um novo nascimento que não é resultado da
capacidade humana, mas da acção sobrenatural de Deus.
VERDADE,
JUSTIÇA E INTEGRIDADE
Corremos sempre o risco de mesmo inconscientemente vestirmos Deus com as
nossas roupagens culturais daí que constantemente nos devemos expor diante da
Sua revelação pessoal em carne e osso. Apesar desse risco acreditamos na
verdade que em termos cristãos não é um postulado filosófico, um catecismo
ético, nem um conjunto de ritos ou liturgias religiosas, mas uma Pessoa. Não
fazemos parte das culturas em que
- a verdade não existe;
- a existir é inalcançável;
- cada um tem a sua verdade;
- a verdade é a súmula de todas as verdades individuais;
- a verdade é propriedade de um grupo particular.
Confessamos que não somos donos da verdade, mas queremos ser seguidores
d’Aquele que a Si mesmo se afirmou e demonstrou como a verdade. Disso estamos
absolutamente convencidos.
Se alguma coisa pode fazer a diferença na sociedade em que vivemos, mais
do que o discurso, é a nossa maneira de viver. Agindo de uma forma diferente
mudamos o mundo à nossa volta. O mundo precisa de mais homens e mulheres que
ajam como pobres de espírito, que sejam mansos, que tenham fome e sede de justiça
(de Deus que não dos homens), que sejam misericordiosos, limpos de coração,
pacificadores e perseguidos por causa da justiça.
A diversidade de culturas obriga-nos como cristãos a viver a
contra-cultura do Sermão da Montanha, para usarmos uma expressão do teólogo
evangélico contemporâneo, de nacionalidade inglesa, John Stott. Contra-cultura
em relação a todas as culturas, mesmo àquelas que têm o rótulo de cristãs
e que tantas vezes tão longe se encontram da sua essência. Citamos aqui pela
sua pertinência no século XXI como no século I o enunciado das bem-aventuranças:
“Felizes os que têm espírito de pobres,
porque é deles o reino dos céus!
Felizes os que choram,
porque Deus os consolará!
Felizes os humildes,
porque terão como herança a Terra!
Felizes os que têm fome e sede de ver cumprida a vontade de Deus,
porque Deus os satisfará!
Felizes os que usam de misericórdia para com os outros,
porque Deus os tratará com misericórdia!
Felizes os íntegros de coração porque hão-de ver Deus!
Felizes os que promovem a paz,
porque Deus lhes chamará seus filhos!
Felizes os que são perseguidos por procurarem que se cumpra a vontade de Deus,
porque é deles o reino dos céus!
Felizes serão quando vos insultarem, perseguirem e caluniarem,
por serem meus discípulos!
Alegrem-se e encham-se de satisfação porque é grande a recompensa que vos
espera no céu. Pois assim também foram tratados os profetas que vos
precederam.” (Mateus 5:3-12).
O desafio da diversidade de culturas no diálogo,
tolerância e liberdade, passa obrigatoriamente pela verdade, pela justiça e
pela integridade.
Todos estes princípios geradores da paz estão
condensados no mandamento por excelência que Jesus nos deixou mais do que nas
palavras, na Sua própria vida e que tão bem se encontra descrito no hino do
amor escrito pelo apóstolo Paulo, narrado nas parábolas do Mestre Nazareno do
filho pródigo e do bom samaritano, e vivido por milhões de homens e mulheres
em todas as culturas, raças, nações e línguas, ao longo da História da
humanidade. É este o desafio por excelência na diversidade de culturas
aproximadas ou distanciadas pela globalização. Não há choque de culturas que
resista ao amor.
“O mais importante é este: Escuta,
Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Ama o Senhor teu Deus com todo o
teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as
tuas forças. E o segundo em importância é este: Ama o teu próximo como a ti
mesmo. Não há nenhum mandamento mais importante do que estes.” (Marcos 12:30,31).
Por muito negras que sejam as nuvens no
horizonte da história humana, diante da pessoa de Jesus Cristo e da revelação
que nos trouxe, temos a certeza absoluta que o verdadeiro amor vencerá!
Samuel
R. Pinheiro
www.samuelpinheiro.com
Comunicação apresentada pelo articulista
na Conferência realizada a 26 de Abril, pela Comissão Diocesana Justiça e
Paz da Diocese da Leiria-Fátima e em que foram oradores o Prof. Dr. Adriano
Moreira e o Prof. Dr. Narana Coissoró, seguida de um período de diálogo e
que contou com a presença dos pastores evangélicos na cidade.
1 Texto
disponível no Portal Evangélico em www.portalevangelico.pt